domingo, 3 de junho de 2012

Hoje é dia de Vivencial



Hoje é dia de Vivencial, darling!

Recife, domingo, 20 de novembro de 2011
Grupo de Teatro Vivencial ainda é um marco de irreverência, quase quarenta anos depois de sua criação

Subversão e purpurina. Uma mistura de ingenuidade, fúria juvenil para contrariar a caretice, uma vontade enlouquecida de ser feliz. Um grupo teatral pernambucano que fez história. Chocou. Experimentou os prazeres do corpo, misturou estéticas, reuniu bichas doutores e bichas analfabetas. Falou e disse que o discurso político não precisa ser chato, pode ter doses generosas de humor. E foi logo, oh, ironia, nas barbas da Igreja Católica, na Associação de Rapazes e Moças do Amparo (Arma), que tudo isso começou, em 1974. Eles achavam o máximo o evangelho dramatizado, uma missa com violão. Iriam transgredir muito mais. Decidiram fazer teatro e logo veio à tona discussões de gênero, inquietações políticas, irreverência.
Um bando de malucos que tinha coragem de dizer em alto e bom som o que sentia, o que incomodava no Brasil que marchava em pleno AI-5. A barra estava pesada e era preciso ser mais que macho para desconstruir o cotidiano e levar aos palcos metáforas de tempos ruins. E haja réplica e tréplicas aos movimentos oficiais.

Depois da apresentação do primeiro espetáculo, Vivencial I, no Mosteiro de São Bento, veio o rompimento com a igreja. Decidiram  criar um grupo. Duros, sem grana, tiravam do lixo cenário, figurino, o teatro que levavam para a intelectualidade marginal, para travestis que se viam representados no palco, garotas da Zona Sul que vislumbravam a possibilidade de ser o que desse na telha.

Agora, quase 40 anos depois, a história do Vivencial volta a ser iluminada. O grupo é a “referência afetiva” para o primeiro longa de Hilton Lacerda, Tatuagem e é homenageado no Festival Recife do Teatro Nacional. Uma ótima oportunidade para reunir o bando - tinha gente que não se via há 20 anos -, nas ladeiras de Olinda e rememorar (confira a conversa).

A montagem de O pássaro encantado da Gruta do Ubajara (1975), por exemplo, hoje é considerada emblemática por eles mesmos. As Vivecas já tinham atritos - na realidade, sempre existiram, até porque não podia faltar céu para tanta estrela brilhar - mas conseguiam somar forças e criatividade para fazer um espetáculo que falava em sustentabilidade. A revolução não estava só no tema ou na estética, mas no comportamento. Eram livres, não precisavam de rótulos, diziam o que queriam.

Ainda assim, receberam apoio financeiro do então Serviço Nacional do Teatro (SNT). Contam que não gastaram quase nada - continuaram fazendo figurinos de retalhos, copiando o texto do espetáculo de próprio punho, usando latas como spots de iluminação. Com o que economizaram, em 1978, compraram um terreno nas cavalariças do Barão de Tacaruna, hoje Salgadinho-Ponte Preta, um lugar marginalizado, no meio do mangue, que virou o Café-teatro Vivencial Diversiones.

Um ano antes, com Sobrados e mocambos (1977), o cenógrafo Beto Diniz se incorporou ao grupo. Era mais um para dialogar com os que lá já estavam - Américo Barreto, Fábio Costa, Auricéia Fraga, Suzana Costa, Ivonete Melo, Roberto de França (Pernalonga), Henrique Celibi. E parece ter sido tanto talento junto, os egos, ou talvez o tempo mesmo, que fizeram com que o Vivencial se alastrasse. Porque a purpurina ainda brilha, nos palcos de tantos que aprenderam com o Vivencial, o que era liberdade.

Cronologia

1974
Vivencial I - Colagem de textos de Brecht, Genet, Platão e jornais. Direção: Guilherme Coelho
Genesíaco - Livro do Gênesis. Roteiro: Roberto Campos. Direção: Guilherme Coelho
Madalena em Linha Reta   Direção:  Guilherme Coelho
João Andrade em Conversa de Botequim - Direção: Guilherme Coelho
Auto de Natal

1975
O Pássaro Encantando da Gruta do Ubajara - Direção: G. C.
Nos Abismos da Pernambucália
Direção: Guilherme Coelho

1976
Vivencial II
Direção: Guilherme Coelho
7 Fôlegos
Direção: Guilherme Coelho

1977
Sobrados e Mocambos
Hermilo Borba Filho.
Direção: Guilherme Coelho
Viúva, Porém Honesta
Direção: Antonio Cadengue

1978
Repúblicas Independentes, Darling
Direção: Guilherme Coelho

1979
As Criadas - Texto: Jean Genet. Direção: Fábio Costa. 
Bonecas Falando para o Mundo
Direção: Guilherme Coelho
Ensaios Espontâneos
Direção: Beto Diniz
A Loja da Democracia
Direção: Guilherme Coelho.
Perna, pra que te Quero? - Texto: Jomard Muniz de Brito.
Direção: Guilherme Coelho

1980
Parabéns pra Você - Direção: G. C. 
Notícias Tropicais - Direção: G.C.
All Star Tapuias - Texto: Vários autores. Direção de Antonio Cadengue, Carlos Bartolomeu e Guilherme Coelho

1981
Rolla Skate - Dir: Henrique Celibi
Nós Mulheres - Adaptação e direção de Américo Barreto
Em Cartaz, o Povo - Adaptação e direção: Guilherme Coelho
The Brazilian Tropical Super Star
Direção: Beto Diniz
Utilidade Pública
Texto: Carlos Eduardo Novaes.
Direção: Beto Diniz

1982
Guerra das Estrelas
Roteiro, direção, cenário, figurino, sonoplastia, iluminação: Beto Diniz
Os Filhos de Maria Sociedade - Textos: Carlos Eduardo Novaes, Carlos Drummond de Andrade, Luís Fernando Veríssimo. Adaptação e direção: Américo Barreto
Ôba Nana... Fruta do Meio - Roteiro e direção: Fábio Costa e Américo Barreto
O Pastoral Culturil das Meninas do Brasil - Roteiro e direção: Américo Barreto
Assim é Peia - Roteiro e direção: Fábio Costa e Américo Barreto
Mar e Cais - Roteiro e direção: Fábio Costa e Américo Barreto

Entrevista >> Grupo Vivencial 

“Hei de ver o rock alucinado de amor pelo próprio rock”

Como esse grupo tão transgressor saiu de dentro da igreja?
Guilherme Coelho - A gente se encontrou na Arma, Associação de Rapazes e Moças do Amparo, e começamos a pensar juntos.

Fábio Costa - Veja que coisa pura! O difícil não foi sair, foi entrar na igreja! (Risos)

Américo Barreto - Coincidiu que quando nós começamos a juntar ideias, era ano de comemoração dos dez anos da Arma. Então resolvemos fazer um espetáculo.

Quais foram as inquietações que surgiram para essa primeira apresentação, Vivencial I, que acabou dando nome ao grupo depois?
Américo Barreto - Apesar de ser muito reacionária, a Arma em si já tinha um dom de aceitação. Era uma coisa meio velada, mas reunia as pessoas que precisavam de ajuda, espaço, tinham ideias novas. Essa coisa foi se evidenciando com força com a nossa atuação, nós é que expusemos.

Suzana Costa - Era a Arma, mas quem saiu atirando foram vocês!

Vocês perceberam que deveriam formar um grupo teatral?
Américo Barreto - Não teve esse momento. Era para fazer um espetáculo e com essas ideias infiltradas, através de Guilherme e dos meninos que tinham um pouco mais de informação e atrevimento em relação às questões sociais, saiu. Assimilamos sem saber exatamente o que estávamos fazendo, fomos pelo caminho da luz.

Guilherme Coelho - Mas também estava bombando Maria Bethânia, que tinha feito um show escandaloso; Secos & Molhados, Dzi Croquettes. O mundo estava respirando isso.

Alfredo Neto - Na época, era a androginia.

Suzana Costa - Depois dessa primeira apresentação, vocês fizeram em vários lugares…

Guilherme Coelho - É porque como deu muita gente, muita repercussão e lá não tinha condição de continuar apresentando, pela infra, por tudo…

Miguel Ângelo - E pela própria proibição do clero.

Madalena Ângelo - A igreja quando viu que era um bando de maluco, falando sobre guerra, paz, sexo, amor! Aquele povo todo nu, dançando mambo!

Alfredo Neto - Na primeira fala eu dizia “Hei de ver o rock alucinado de amor pelo próprio rock”.

Madalena Ângelo - E disse que quando o abade olhou pela brecha….(Risos)

Américo Barreto - A igreja como instituição mesmo ou não se incomodou ou fez que não viu. As reações foram mais com o próprio grupo. A Arma nos abandonou.

Guilherme Coelho - Olinda estava sob o signo do clero progressista. Não sofremos represálias. A igreja era dez vezes mais avançada.

Suzana Costa - Esse primeiro espetáculo apresentaram num abrigo. Um primo disse: “vamos ver um espetáculo de uns frangos ali”. Quando vi, adorei.

Madalena Ângelo - Só sei dizer que era um amor tão grande, pra dar pra quem quiser! Amor mesmo… Agora o sexo tava assim, escondidinho. (Risos).

O que as pessoas falavam de vocês?
Alfredo Neto - A minha mãe dizia para eu deixar o grupo. “Porque quando a gente vê, lá vem. Aquele é, aquele não é, aquele parece mas não é, aquele outro, que está com aquela outra, já foi, aquele está pensando em ser”. Ninguém sabia. Nós éramos.

Fábio Costa - Quando tinha um festival e o Vivencial entrava em cena, o teatro lotava de gente e de frango.

João Andrade - Na época do Vivencial II, estava tendo o festival de teatro no Santa Isabel. E todo mundo foi de ônibus. Guilherme, com uma bota dourada, com uma calça de pele de onça, sei lá. Uma gola cheia de pena, o cabelo levantado, uma juba.

Fábio Coelho - Uma marca do Vivencial é que cada um podia ser como é. Disseram que a gente tinha virado uma seita. Não, a gente era “aceita’. Eu era carrancudo e era administrado no grupo. Eu tinha umas atitudes, assim, um pouco, machão.


Ivonete Melo - Machistas…a gente tinha que dizer, “fique na sua”.

Alfredo - Em Vivencial I, foi posto para fora por Guilherme por conta disso. (Risos)

Fábio Coelho - Agora deixem eu falar por mim. Cada um tem um Vivencial. Eu vivi um Vivencial de tolerância. Porque eu tinha muita agonia quando via uma zona muito grande, uma esculhambação, calcinha, o cacete! Então eles aproveitaram esse traço da minha personalidade e o grupo, na sua sapiência, praticava tolerância social, responsabilidade social, a gente já fazia isso naquela época. Éramos muito engajados. O texto e a estética do Pássaro encantado da gruta do Ubajara é extremamente ecológico. A gente já falava em sustentabilidade, os textos já denunciavam que as cidades iriam ser tomadas pelos carros, que a praia não ia dar para tomar banho! Tive a oportunidade de mudar de atitude, de ficar mais tolerante. E todos, cada um ao seu modo, construímos aquele mosaico de diversidade fantástico. Tinha um resultado estético impactante e único. Qualquer coisa era subsídio teatral. O texto do jornal, a fala do doido, inventamos gags de todos os tipos.

Como esse grupo enfrentou a ditadura?
Fábio Coelho - Às vezes desconhecíamos a censura, porque a gente sabia que se levasse para lá, iriam proibir. Levamos metralhadora no ouvido muitas vezes, a gente estava no teatro, com aquele cenário, um jardim lindo, desenhado, e tinha um puta falo, um caralho em flor. Que a gente colocava no jardim, tão inocente, o jardim de Epicuro, o jardim das delícias. Sempre fomos hedonistas. Intuitivamente, a gente achava que poderíamos ser felizes tendo prazer.

Como era a direção do Guilherme?
Ivonete Melo - Esse daí fez coisa conosco que Deus duvida! Eu vinha da dança clássica, fina, prendada. Quando vi, tava com os peitos de fora, fazendo filme nu!

Fábio Coelho - O teatro considerado bem feito, teatrão, era o Tucap (Teatro da Universidade Católica de Pernambuco) dirigido e com um grupo de rapazes muito bem comportados, “acade-micos”, que não era bem aquela mundiça do Vivencial, aquela gente alegre. E eles fizeram um teatro lindo lá e tinha o personagem de um padre, que era marcado passo a passo, e naquele momento tenso, o Guilherme achou por bem gritar: “Tenha fé em Jesus”. Isso foi uma zona total.

O Vivencial conseguiu mudar o que era feito no teatro em Pernambuco?
Américo Barreto - Abrimos as porteiras para o teatro que se faz hoje. E apesar de a gente falar coisas duras, ser taxado de subversivo, tinha o toque alegre, que amenizava. Quem não estava bem-preparado, não sabia que éramos tão corrosivos. Esse jeito dançarino e musical de fazer, esse tom comedioso, jocoso, aprendi com o grupo e o grupo ensinou a toda a comunidade pernambucana.

Fábio Costa - É como se fossem ondas, como os Dzi Croquettes, como os Secos & Molhados, o Vivencial também faz parte de um desses movimentos de desencantar, do desabrochar de uma felicidade.

Fonte: Diário de Pernambuco


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